Escritos de um ônibus em movimento

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O mar passa pela janela.
Negrume de oceano fundido com noite.
Arrebenta o branco da areia.

A paisagem desfocada, granulada, resiste por entre a neblina.
A resistência abre a a boca negra num grito sem som – um Munch em Copacabana.
Inerente e invisível aos carros, às pessoas hermeticamente fechadas em carros.

Nenhuma resistência é fugaz.
Ela se esgueira no escuro, embrenha-se nos detalhes – como a noite.

É noite.
O mar passa pela janela e inunda o ônibus.
Sua liquidez transforma-se.

Água salgada que evapora em cheiro – adentra sorrateiramente por entre as frestas ocultas do ônibus hermeticamente fechado.

O mar chega às minha narinas como a ressaca chega ao calçadão.
Abre.

Levanto a cabeça e olho pra fora.
O mar passa pela janela.

O ônibus faz a curva em direção ao centro, viro a cabeça em manifesto.
Acompanho o último fio de mar desaparecer da retina.

Mas na memória e na narina,
ele persiste.

Resiste.

Como o grito de toda aquela massa de água aterrada, por baixo do concreto.
De olhos fechados imagino que o sacolejo do ônibus seja o ritmo das marés que me guia.

O mar
já não passa na janela.

Ele passa em mim.

peixe fora d'agua

Risqué: a glorificação do homem bunda na publicidade

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Texto originalmente publicado no zine digital ORNITORRINCO.

O homem bunda é aquele chamado por muitos de brasileiro padrão. Não tem nada a ver com classe social, esse elemento é encontrado em todo o alfabeto da pirâmide. Tem a ver com toda a unanimidade ser burra – frase de Nelson Rodrigues, um gênio excêntrico e tarado travestido de brasileiro padrão. Ele ainda complementa o pensamento com a pérola: “Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”.

Essa semana foi lançada a campanha publicitária da nova linha de esmaltes da Risqué, chamada “Homens que amamos”. Esse publicitário ou publicitária – afinal, o homem padrão se aplica a mulheres também – nos presenteou com nomes de esmaltes ainda mais curiosos do que “Marshmallow de alfazema” e “Poodle”.

Risqué 1

Denominados “Fê mandou mensagem”, “Guto fez o pedido”, “Leo mandou flores”, “André fez o jantar”, “Zeca chamou para sair” e “João disse eu te amo”, os esmaltes da nova linha ainda foram promovidos por meio de uma campanha que diz o seguinte: “O assunto número 1 das nossas conversas em 6 cores que vão dar o que falar”.

O homem bunda acha que o Fê, o Guto, o Leo e todo mundo aí de cima tá de parabéns por praticar gestos do repertório romântico que podem ser bem vazios, como mandar uma mensagem ou flores, ou por ações cotidianas, como fazer o jantar.

Risqué 2

Mas, principalmente, o homem bunda acredita que essas são as questões centrais na vida de toda mulher. Não enxerga que a mulher hoje está no centro da própria vida, que além do amor romântico há outras formas de afeto que a nutrem: amor de amigos, amor de mãe, de pai, tia, irmão; de cachorro, gato, samambaias. Amor por si mesma. Amor por seus projetos, suas ideias, sua religião ou o esporte que pratica. Tem aí uma gama infinita a ser abordada, mas a marca escolheu justamente limitar essa mulher, abusando de clichês que no contexto da sociedade na qual vivemos – onde mulheres são violentadas por estarem sozinhas à noite, onde mulheres ocupam o mesmo cargo de um homem em uma empresa e ganham menos – soa sexista e perpetua o machismo sim.

Ao colocar a visão do homem bunda em foco, com medo de contestá-la ou refletir sobre ela, a publicidade hoje vendeu seu simancol por alguns milhões de dólares e esqueceu seu senso de responsabilidade no fundo da gaveta de cuecas sujas.

Eu trabalho com publicidade e sei que usar clichês é necessário por uma simples questão: tempo em canais de mídia é caro, então é preciso passar a ideia para o maior número de pessoas possível no menor tempo possível. E os clichês todo mundo entende, até o homem bunda, que vive sua vida baseada neles. Mas tudo é a forma como se aborda um conteúdo. Pode-se tratá-lo com ironia, humor, reflexão. Brincar, inverter seu sentido. Há muitas formas a serem exploradas. O conteúdo deve ser simples, mas a forma de abordá-lo não necessariamente.

Risqué 3

É muito curioso como essa visão de mundo conservadora e preconceituosa é comprada por todos, inclusive pelos atingidos pelo preconceito. Tim Maia já dizia que o Brasil é o único país onde pobre é de direita. Não me assustaria em nada descobrir que a grande cabeça por trás dos novos esmaltes da Risqué é feminina.

A forma de pensar do homem bunda é branca, de classe alta e masculina. Mas é perpetuada, repetida e comprada por negros, mulheres e pobres. Afinal, qual o público-alvo da Risqué?

Risqué 4

Não estou propondo um motim aos esmaltes nem afirmando que nenhuma mulher gosta de flores. Eu converso com minhas amigas sobre o cara que eu estou saindo, e fico feliz quando recebo uma mensagem dele. A questão não é essa.

Quando essa parte da vida de algumas mulheres é mostrada de forma excessivamente valorizada numa campanha publicitária, homenageando homens por praticarem atos comuns na rotina de uma lar que deveriam ser compartilhados por ambos os sexos igualmente, reforça uma opressão que há anos atinge nós do sexo feminino.

Tudo é uma questão de contexto, tudo é uma questão da forma com que se aborda um tema, e, principalmente, tudo é uma questão de reflexão e debate.

Só o debate espanta o homem bunda das pessoas.

O riso por trás dos cartazes do 15/03

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*Matéria publicada originalmente na revista digital NOO.

O riso é algo natural, tão antigo quanto o homem. Ele tem caráter contraditório: pode vir da tristeza, da melancolia, da dor. A figura do palhaço é a personificação dessa dicotomia: ele se faz passar por toda e qualquer desgraça para arrancar o riso do público – afinal, a maior desgraça é não ouvir o som da gargalhada alheia.

Há também outro fator que desperta o riso. Na Grécia, milhares de anos antes do nascimento de Cristo, era contada uma história que o exemplifica muito bem. Hera, mulher de Zeus, o abandona depois de uma briga. O Deus dos Deuses faz de tudo para provocá-la e trazê-la de volta: espalha aos setes ventos que encontrou uma nova mulher e irá se casar novamente, erguendo inclusive uma estátua coberta por um véu em homenagem à noiva. Mergulhada em ira, Hera retorna e fica frente a frente com a estátua da sua suposta substituta. Ao arrancar o véu do monumento, ela se depara com uma surpresa: não há rosto algum. Hera descobre a farsa e cai na gargalhada. Segundo a mitologia grega, esse é o nascimento do riso.

Desgraça e espanto: dois motores um tanto inesperados da risada. Tá, mas o que isso tem a ver com as manifestações anti-Dilma e pró impeachment do dia 15 de março, como o título havia me falado lá em cima, redatora?

PEGADINHA DO MALANDRO, glu glu nhé nhé!

Antes fosse.

Eu, como muitos de vocês que não foram à essas passeatas, me peguei caindo na gargalhada com os cartazes erguidos no domingo passado, com orgulho, regidos por expressões sérias, caras fechadas – o que, convenhamos, deixava tudo mais delicioso. As imagens circularam na televisão – que as louvou com muito orgulho e muito amor – e na internet em exaustão, fazendo o dia de muita gente mais feliz. Ou quase.

No fundo desse riso… É o fim do poço. É o palhaço. A mitologia grega. É a desgraça e o espanto. Desgraça por realizar que há tanta gente reacionária vivendo no mesmo país que a gente – gente que vota, que comanda empresas, que escreve, que compartilha o que escreve. Espanto por ver tantas pessoas pedindo por intervenção militar, comparando Dilma ao Collor, louvando a política neoliberal (esta exercida por Dilma com maestria diga-se de passagem): será que ninguém estudou história? Como alguém pode defender a ditadura militar depois de vivermos ela por 21 anos no Brasil? Me veem à cabeça os paus de arara, forma de tortura reavivada dos tempos de escravidão pelos militares, na qual presos políticos tinham seus punhos e joelhos atravessados por uma barra de ferro, sendo pendurados a 20 centímetros do chão, posição que causa dores atrozes no corpo e que deixou muitos paraplégicos. Choques elétricos, afogamentos, estupros, espancamentos. Isso tudo foi legitimado pela ditadura. Sem contar o fato de não ser permitida a livre expressão de opinião. Ou seja: se vivêssemos numa ditadura militar, como tantos pregaram nessas manifestações, eles não poderiam estar se manifestando contra o governo vigente. Essa galera toda iria ser enxotada da Avenida Paulista por cassetetes e militares em cima de seus cavalos – mais ou menos como foi em junho de 2013.

Como comparar Dilma a Collor, que envolvido pessoalmente em escândalos de corrupção, congelou as poupanças de todo o país e mantinha uma inflação de 1.119% ao ano – contra os 7,7% que vivemos hoje.

Não, a vida não tá fácil pra ninguém, mas não é com ignorância, histeria e conservadorismo que iremos melhorar. Esse olhar maquiavélico, dividindo o país, também não ajuda muito. Só com educação que vamos poder explicar para o senhor ostentando o cartaz que prega a prisão de Karl Marx que ele morreu na Rússia em 1883, para a pessoa que carrega um papel escrito “Chega de genocídio. Intervenção militar já.” que ele está sendo incoerente, para quem ergueu a faixa dando uma basta à Paulo Freire quem foi Paulo Freire, para o Ronaldo que vestia uma camisa com os dizeres “A culpa não é minha. Eu votei no Aécio” que, como vivemos numa democracia, o problema é dele também, ou não, já que ele deve viver em Miami ou Ibiza, sei lá.

Não, não tá fácil. Mas não quer dizer que nós não podemos nos servir da poética e inteligência do humor pra viver com mais prazer.

Feliz Dia das Mulheres – na rua, no ônibus, no vagão rosa ou no vagão de qualquer cor que seja

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* Matéria publicada originalmente na revista digital Noo.

Dia 8 de março, mais conhecido como “Dia das Mulheres” ao redor do mundo, irá estrear na televisão britânica o documentário India’s Daughter. O longa-metragem retrata a história da jovem indiana Jyoti Singh, que trabalhava de 8 da noite às 4 da manhã num call center, dormia 3 horas, e então acordava para estudar. Ela costumava falar para o pai, um operário: “Todo dinheiro que você guardou para o meu casamento, use-o em minha educação”. No dia 16 de dezembro de 2012 ela estava feliz: tinha acabado de completar os exames para se tornar médica. Naquela noite ela decidiu ir ao cinema ver o filme A Vida de Pi com um amigo, e na volta para casa os dois pegaram um ônibus, por volta das oito e meia da noite. Nos bancos do ônibus Jyoti foi estuprada por cinco homens e um menor de idade, teve suas vísceras retiradas e foi jogada para fora do ônibus pela janela. Jyoti Singh tinha 23 anos.

Na terça passada, cinco dias antes do “Dia das Mulheres”, uma jovem de 16 anos foi molestada num ônibus da linha 309 (Alvorada – Central) à caminho da escola. Ela estava dormindo e acordou com as mãos de um homem debaixo de sua saia. Começou a chorar assustada e mandou uma mensagem para o pai, motorista de taxi que estava próximo do local e chamou a polícia. Ele parou o ônibus e o homem que praticou o abuso foi preso. Ao concluir sobre o abuso sexual que sofreu, a jovem que usava o tradicional uniforme de normalista, disse que passará a ir de calça para o colégio: saia nunca mais.

Os estupradores de Jyoti foram presos, mas estão recorrendo. O motorista que dirigia o ônibus e nada fez, deu a seguinte declaração: “Você não pode bater palmas com apenas uma mão – são necessárias duas. Uma garota decente não iria vagar por aí à noite. Uma garota é mais responsável por um estupro do que um garoto… por volta de 20% das garotas são boas”

Saia, decência, responsabilidade. Nos dois casos, houve a tentativa de justificar o ato pela tangente, e culpar um pedaço de pano ou uma jovem que gosta de ir ao cinema pela violência e barbárie que ambos os episódios cospem na nossa cara, com nojo e repulsa.

Sim, vivemos numa sociedade machista – principalmente a brasileira e a indiana. Mas o que isso significa? Para mim isso imprime uma visão da mulher distante, irreal, ignorante, utópica. A mulher não foi feita para enfeitar o mundo. Porque ela foi feita para o que ela quiser fazer: quem manda nela é ela. Casos como o asco expressado por muitos – principalmente nas redes sociais, ah essas danadas, sempre elas – ao ser divulgada uma foto da axila não depilada da atriz Grazi Massafera, dialogam com esses episódios de violência. É uma ficha que ainda não caiu para o mundo: e daí que ela estava com o sovaco peludo? E daí que ela estava de saia? E daí que ela estava no ônibus às oito e meia da noite?

Vimos no final do ano de 2014 a proposta de implementação do vagão exclusivo para mulheres no metrô de São Paulo ser vetada, fruto de uma mobilização popular feita através da plataforma “Panela de Pressão”, promovida pela organização Minha Sampa. A pressão foi forte no nível de feijoada de domingo pra família toda: o prefeito Geraldo Alckim voltou atrás e resolveu não efetivar a medida, que já estava em teste nas plataformas da cidade.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro tais vagões foram instalados em 2006 sem consulta, sem alarde, e com o direito a comentários elogiosos. Os cariocas nem titubearam em relação aos novos vagões cor-de-rosa: “Ufa!”, as mulheres disseram em sua jaula climatizada, “Droga.” pestanejaram os tarados na cela condicionada ao lado. Na plataforma, na catraca, na rua, nos lares e nas mesmas prisõ-epa vagões em horários das 6hs às 9hs e das 17hs às 20hs está tudo certo.

Protesto SP_Vagão Rosa

Sertinho.

O pensamento persiste. Primeiramente, o próprio ato de separar mulheres – a saborosa presa da savana – e homens – bestas selvagens carnívoras, coitados, é o seu instinto, não podem se controlar – para impedir o abuso sexual recorrente em transportes públicos lotados é RECONHECER e LEGITIMAR o próprio abuso.

Segregar nunca foi a solução para nada. A seguinte afirmação da Marcha das Mulheres, sobre os vagões rosas sendo testados em São Paulo, explica bem essa ideia: “Consideramos esse projeto um grande problema, pois propõe que, para os homens pararem de assediar as mulheres no transporte, somos nós mulheres que devemos perder o direito de entrar em todos vagões e ônibus. É um problema porque somos 52% da população, e em São Paulo representamos 58% dos(as) usuários(as) dos serviços de transporte público.”

Sim, o assédio existe, disse o Metrô Rio. O que vamos fazer a respeito disso? Isolar as mulheres, oras. Desviar, sair pela tangente. Culpar a vítima (Afinal, quando você é criança e faz uma besteira, o que os adultos fazem com você? Te deixam num cantinho sozinho, pra você pensar no que fez). A besteira que as mulheres fizeram. Morder a maçã, desobedecer, pensar por si própria. Usar saia, ir ao cinema, não se depilar. Fazer o que ela quer fazer e assim desrespeitar as ordens do seu dono, o mundo.

A ordem é que está invertida. O mundo se comporta como o pai rigoroso da mulher, que tenta discipliná-la dizendo o que ela deve ou não fazer – mas foi a mulher quem pariu o mundo.

Na antiguidade os seres humanos viviam em meio à natureza, formando uma sociedade matriarcal. A Grande Mãe era adorada, a mulher, como a natureza, era reconhecida como geradora e provedora da vida. A fertilidade era venerada em festas à luz da lua, e os filhos não tinham pais, apenas mães, já que não havia o conceito de monogamia. Quando o conceito de propriedade privada começou a surgir, isso se tornou um problema. Afinal, como dividir a terra? Quem são os meus herdeiros? E assim começou o conceito de núcleo familiar, encabeçado pelo homem.

Não à toa a mudança de uma sociedade matriarcal para patriarcal se relaciona com o surgimento da propriedade privada. A partir daí a mulher começou a ser vista como a terra, mas não da mesma forma que era adorada antes. Agora a mulher era como a terra, como o boi, como o saco de feno: propriedade privada. Do homem, da sociedade, do mundo.

A mulher pariu o mundo, não ao contrário. Então da próxima vez que o mundo tentar lhe dizer como se comportar, mulher, diga pra ele sentar ali no cantinho, que você tem mais o que fazer.

Mulher-Àrvore

Cidade Maravilhosa

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Correria, gritos, meninos descalços e sem camisa.

Assusta um olhar distraído.

Mas se atravessar, ao aproximar,

uma bola dá um balão

na carranca do passante,

é gol!

A mão esconde a bolsa,

o cotovelo pra fora protege

caso haja luta,

mas a única disputa

é de sorrisos,

quando o homem negro carregando sua casa nas costas,

passa e dá um contente bom dia.

O mp3 é segurado com a força que deixa a pele vermelha,

contraída,

mas o estender da mão do menino descalço,

era só pra oferecer o amendoim, ou melhor, dois

“Tia tia tá dois por um real, vai?”.

Vai caminhando,

e agora assobiando;

os músculos relaxam com a brisa do mar que passa,

não sei como, por entre o concreto.

Corre pra pegar o 170, que corre pela vista do pão de açúcar

tão monumental e surreal em meio à cidade que parece produzido em tela verde.

“É, ainda é bonita,”

pensa,

enquanto os dedos relaxados deixam escapar a bolsa,

que descansava no banco ao lado da janela

(erro de principiante, pô).

Puxada pro lado de fora,

só se escuta ao longe,

em meio ao sacolejo do exoesqueleto de plástico e metal barato,

“Foi mal, tia!”

anuncio rio de janeiro

O que o Maracatu me ensinou

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A resistência e a alegria são como ar.

Estão por aí, onipresentes e oniscientes em cada um.

Cada folha que oxigena, cada gato que espreguiça, cada batuque no couro da alfaia é rugido, é trovão.

Tudo traz alegria. Tudo é (r)existência.

Isso é o que o Maracatu me ensinou

(mesmo quando suas escápulas lutam contra a gravidade, o calor e a dor elas levantam e descem, batendo asas que empunham o cedro e a espada feitos de ar, protegendo o desfile; é esse o papel das catitas: defender a coroação da alegria e da resistência).

Não não, para ver é preciso mais do que olhos,

para sentir mais do que pele.

 

“Eu ando e você não anda,

eu vejo e você não vê,

sou Almirante do Forte

que é macumba pra valer.”

 

maracatu estrela brilhante

palavras

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palavras são como batatas.

precisam ser lavadas

descascadas ˜ cuidado pra não lascar os dedos˜

colocadas de molho.

depois nós a cozinhamos,

para tirar a rigidez.

em água fervente elas ficam

leves

prontas para serem amassadas

misturadas com delícias como sal, manteiga, leite.

palavras devem ser servidas em um prato fundo,

aconchegantes

como um purê gentil com as mandíbulas

num dia chuvoso.

então

não me venha

com um bife de segunda

em prato raso

num dia quente.

minhas mandíbulas vão destroçá-lo

antes que ele

as (me) destroce.

palavras

solta

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pina bausch_blaubart

segura o telefone

ouve a respiração do outro lado

o ar em suspensão com isso de não ter como saber

se olhava no meu olho

segura o copo

ele quase caiu

quase pôde ouvir o estilhaço

e a voz de mãe dizendo que ele estava muito na borda olha aí meu filho seja cuidadoso

segura a parede

não deixa ela tombar

com o sopro do lobo

quem mandou ficar na rede

em vez de construir parede

de concreto

e não de folha de bananeira,

que serve só para abanar.

segura o balde

a chama se aproxima

é rápida

inconsequente

impiedosa

mas você é mais.

……………………………………………………………………………………….

agora abre

| dedão, indicador, dedo médio, anelar, o pequenino |

e ~

solta.

 

o respiro do outro lado da linha vai segurar por dois segundos

de susto

quando ouvir o clique.

o copo vai virar pequenos diamantes

belos e falsos

no silêncio da casa vazia

a parede cai na sua cabeça

mas tudo bem

folha de bananeira não pesa

larga o balde

de nada serve

a fumaça já entrou nos pulmões

tosse

abre

bota pra fora essa massa volátil pesada escura

de nada serve

solta

o paletó

pega a caneta e aquela nota de alguma compra esquecida

escreve do lado do R$16,58

eu não te amo mais.

Quem viver Verão

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Pra quem suspira na rede
que verão é sinônimo de preguiça,
pulo do sofá como se fosse chapa quente
e levanto meu dedo ao céu em negação.

Não, não…

Verão é transmutação.

É virar líquido no ponto de ônibus, na areia, na fila do açaí.

Transcender a matéria, se transformar em fluidez.

Virar poça na sala, mas sem foco de dengue.

É a poça que é pisada, respingada.

Em meio à dança cai pro rio,
cai pro mar,
cai na roda.

O sal esquenta a ferida,
inquieta e cura.

O fazer acontecer,
o girar a roda.

Ficar parado no verão,
não dá.

Movimento movimenta o ar,
circula.

Atua nos poros,
refresco.

Esta estação, meu bem, é para poucos.

Os poucos que ainda fervem o sangue,
os das pernas polvorosas
e coração em andamento.

Tem que estar vivo,
vivo (!),
pra entender o verão.

Quem viver Verão_Filme Pina 1

Não passarão

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Quem está acostumado
a fechar a porta
a quem não é dos seus,

a jogar ossos
aos nossos,

a não caber os pés
nos sapatos
do próximo.

A impossibilidade de se colocar no lugar do outro.

Machuca sem pensar,
arranca sem olhar.

Sem certezas e sem utopia,
não sente nem a fuligem da chama.

Rege
a sua orquestra imaginária,
baqueta no ar,
conduz o silêncio
que incomoda.

O vazio os aflige,
os faz preencher com
coisas que brilham
por fora.

Pontiagudas,
elas amolam
a faca do medíocre;

golpe final.

Na falta de
um sentido, um amigo,
enche-se de tudo,
quanto maior seja,
qualquer que seja.

Porque só quem desgosta
o gosto
da saliva, do suor, das lágrimas,

compreende

o ladrão que nunca teve fome.
“Abstenha-o”,
falam eles.

Mas não entendem

o amor (é),
o ato de criar junto,
o imaterial.

Força!

Fechar a trava,
barricada no portão,
porque quem cega pelo brilho de fora
nem nota que
dentro

a água sem grandes exibicionismos,
minuciosa e quieta
passa pela rachadura do muro,
e de gota em gota
inunda o castelo.

Ela passa rasteira e serena,
mas nem tudo passa
pela brecha pequena.

Grandes egos
cegos
ficam.

Eles, eles sim,
ouvirão do lado de fora do muro
enquanto singela e crescente,
a água bate em seus pescoços:

“Não, não passarão!”

Não passarão